Jamais haverá ano novo se continuar a copiar os erros dos anos velhos.
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Olho-te pelo reflexo Do vidro E o coração da noite E o meu desejo de ti São lágrimas por dentro, Tão doídas e fundas Que se não fosse: o tempo de viver; e a gente em social desencontrado; e se tivesse a força; e a janela ao meu lado fosse alta e oportuna, invadia de amor o teu reflexo e em estilhaços de vidro mergulhava em ti. Ana Luísa Amaral In Anos 90 e Agora |
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha
Deixa a mão
caminhar
perder o alento
até onde se não respira.Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com nácar da língua.Só um grito desde o chão
pode fulminá-la.A morte
não é um segredo
não é em nós um jardim de areia.De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.Vou ensinar-te como se reconhece
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.A boca sobre a boca nevava.
Não cantes o meu nome em pleno dia não movas os seus ásperos motivos sob a luz dolorosa sob o som da alegria Não movas o meu nome sob as tuas mãos molhadas do choro doutros dias não retenhas as sílabas caídas do meu nome da tua boca extinta Não cantes o meu nome a primavera já o ameaça hoje principia a vida do meu nome não o cantcs com a tua alegria Gastão Cruz os nomes Imagem da Linguagem Assírio & Alvim 1974 |
Músicas |
Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.
Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.
Bartók em relação ao resto.
A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.
Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.
Ana Luísa Amaral
Minha Senhora de Quê |
Gozo Desvia o mar a rota do calor e cede a areia ao peso desta rocha Que ao corpo grosso do sol do meu corpo abro-lhe baixo a fenda de uma porta e logo o ventre se curva e adormece e logo as mãos se fecham e encaminham e logo a boca rasga e entontece nos meus flancos a faca e a frescura daquilo que se abre e desfalece enquanto tece o espasmo o seu disfarce e uso do gozo a sua melhor parte M.Teresa Horta |
SO-NETO JORGE, Luiza |
A silabar que o poema é estulto o amado abre os dentes e eu deslizo; sismos,orgasmos tremem-lhe no olhar enquanto eu, quase a rimar, exulto. Conheço toda a terra só de amar: sem nós e sem desvãos, um corpo liso. Tenho o mênstruo escondido num reduto onde teoricamente chega o mar. Nos desertos-íntimos, insuspeitos- já caem com a calma as avestruzes -ou a distância, com os oásis, finda; à medida que nos arcaicos leitos se vão molhando vozes e alcatruzes ao descerem ao fundo pego, e à vinda. Luiza Neto Jorge O Amor e o Ócio Poesia |
estou escondido na cor amarga do fim da tarde. estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que o
outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento
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Para Quê Tanta Pressa...
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões |
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo, As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados Ao peso dos pássaros que se abrigam. É à janela dos filhos que as mulheres respiram Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas Transformam-se em escadas Muitas mulheres transformam-se em paisagens Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem Cheias de rebentos As mulheres aspiram para dentro E geram continuamente. Transformam-se em pomares. Elas arrumam a casa Elas põem a mesa Ao redor do coração. Daniel Faria de Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998) |
As pessoas sensíveis |
As pessoas sensíveis não são capazes De matar galinhas Porém são capazes De comer galinhas O dinheiro cheira a pobre e cheira À roupa do seu corpo Aquela roupa Que depois da chuva secou sobre o corpo Porque não tinham outra O dinheiro cheira a pobre e cheira A roupa Que depois do suor não foi lavada Porque não tinham outra "Ganharás o pão com o suor do teu rosto" Assim nos foi imposto E não: "Com o suor dos outros ganharás o pão." Ó vendilhões do templo Ó constructores Das grandes estátuas balofas e pesadas Ó cheios de devoção e de proveito Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem. Sophia de Mello Breyner Andresen (Livro sexto) |
por vezes quando caminho sobre as pedras da beira rio que se rasgam sob os passos interrogo a tarde e os fantasmas que se escapam destas fendas. ao som de uma melodia evanescente abro as portas da alma e, de par em par, todos os portões do corpo. sem amarras, à beira de Ser acalmo então a passada leio teresa o poema da recusa e pressinto que se não as polpas então os verbos crus nus como os meus pés descalços, sempre descalços, sabem de ti da erva da cidade do mar que é nosso que unindo afasta as marés e as margens, da falésia de todas as coisas visíveis de todas as se opõem simétricas e complementares das que falam das que calam das que gemem de prazer das que gritam gaivotas soltas no silêncio de mulher, é então que, em emudecimento contemplativo, oiço a lição de nietzsche e, experimentada, solto o elástico que me prende no vazio em queda livre, convicta deixo-me pender, árvore de braços abertos sobre o mar … Teresa Horta Poema inédito |
A fotografia que te mostra assim por inteiro É a preto, branco e cinzento e olha para mim. É carta que se diz de ti, é imagem que vem por ti E olho-a com cores do sorriso e do coração Como se a vontade fosse quem manda, sem mais regra. A fotografia que te mostra assim, tem cheiro De mar e de verde e de perfumes que são assim... Tão únicos... especiais, como sei que nunca vi Em toda a minha forma vivida de certeza e razão... Há sabor na expressão que vejo e me alegra. A fotografia que te mostra assim fala comigo, Cara a cara, e lembra-me que me castigo Por ter que castrar o querer estar contigo. A fotografia que te mostra assim já é minha... Hei-de gastá-la com olhos que pensava que não tinha, Hei-de cheirá-la com sentido que na alma se aninha. Valdevinoxis |